'Como sobrevivi por 5 anos em cruel cadeia da China para presos estrangeiros'
25/05/2025
(Foto: Reprodução) O australiano Matthew Radalj contou à BBC o que passou enquanto esteve preso na China, incluindo um período de isolamento na solitária e torturas psicológicas. O australiano Matthew Radalj ficou preso durante cinco anos em um centro de detenção de Pequim
EPA
Compartilhar uma cela suja com cerca de 10 pessoas, sofrer privação constante de sono, conviver com as luzes acesas 24 horas por dia, más condições de higiene e trabalho forçado.
Essas são algumas das coisas enfrentadas pelos presos nas cadeias chinesas, segundo o australiano Matthew Radalj, que passou cinco anos na Prisão Número 2 de Pequim, uma instalação utilizada para detentos estrangeiros.
Radalj, que hoje vive fora da China, decidiu tornar pública sua história e contou ter sofrido e presenciado castigos físicos severos, trabalho forçado, privação de alimentos e tortura psicológica.
A BBC conseguiu confirmar o relato dele com vários ex-presos que estiveram no local na mesma época que Radalj.
Muitos pediram anonimato por medo de represálias contra familiares que ainda moram na China. Outros disseram que só queriam esquecer a experiência e seguir em frente.
O governo chinês não respondeu à solicitação da BBC para comentar o caso.
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Uma chegada dura
"Estava em péssimas condições quando cheguei. Na primeira delegacia em que estive, apanhei por dois dias seguidos. Fiquei 48 horas sem dormir, comer e beber água, e depois me obrigaram a assinar uma pilha de documentos", contou Radalj sobre sua chegada ao sistema penitenciário chinês no dia 2 de janeiro de 2020, quando ele foi detido.
Ex-morador de Pequim, ele diz ter sido condenado injustamente depois de uma briga com atendentes de um mercado de eletrônicos, por causa de uma discussão sobre o preço combinado para consertar a tela de um celular.
Radalj conta que acabou assinando uma confissão falsa de roubo, depois que lhe disseram que seria inútil tentar provar sua inocência em um sistema com uma taxa de condenações penais de quase 100%. Sua esperança era de que assumir a culpa pudesse reduzir seu tempo de prisão.
Os documentos judiciais mostram que isso funcionou até certo ponto, já que ele recebeu uma sentença de quatro anos.
Mas, uma vez na prisão, teve que passar vários meses em um centro de detenção separado, onde foi submetido a "uma fase de transição" ainda mais brutal.
Radalj estava vivendo há alguns anos em Pequim quando foi preso, em janeiro de 2020
Matthew Radalj
Durante esse tempo, os prisioneiros têm que seguir regras extremamente duras, em condições horríveis.
"Era proibido tomar banho ou fazer higiene pessoal, às vezes durante meses seguidos. Inclusive, só se podia usar o vaso sanitário em horários específicos, e eles eram nojentos! Os dejetos dos vasos do andar de cima pingavam sobre nós."
Eventualmente, ele foi transferido para uma prisão "normal", onde os detentos tinham que dormir juntos em celas superlotadas, com as luzes sempre acesas. Também comiam no mesmo espaço, segundo ele.
Radalj conta que os prisioneiros africanos e paquistaneses formavam o maior grupo na prisão, mas também havia detentos do Afeganistão, Reino Unido, Estados Unidos, América Latina, Coreia do Norte e Taiwan. A maioria deles havia sido condenada por atuar como mula no tráfico de drogas.
Pontos por bom comportamento
Segundo Radalj, os presos eram submetidos regularmente ao que ele descreveu como tortura psicológica.
Uma delas era o "sistema de pontos por bom comportamento", uma forma, ao menos em teoria, de reduzir a pena.
Os detentos podiam ganhar no máximo 100 pontos por mês por bom comportamento, realizando tarefas como estudar a literatura do Partido Comunista, trabalhar na fábrica da prisão e delatar os outros prisioneiros.
Quando acumulavam 4.200, poderiam, em tese, usar para reduzir o tempo na prisão.
Se fizermos as contas, isso significa que um prisioneiro teria que atingir a pontuação máxima todos os meses durante três anos e meio para ser premiado.
Contudo, Radalj afirma que esse sistema era usado como um meio de tortura e manipulação psicológica.
Segundo ele, os guardas esperavam até que um detento estivesse prestes a alcançar a meta para penalizá-lo por qualquer infração, o que fazia com que o preso perdesse seus pontos em um momento decisivo.
Essas infrações incluíam — mas não se limitavam a — guardar ou dividir comida com outros prisioneiros, sair da linha pintada no chão ao caminhar pelo corredor, pendurar meias na cama de forma "incorreta", ou até ficar em pé muito perto da janela.
Outros ex-detentos que falaram com a BBC sobre o sistema de pontos descreveram o instrumento como um jogo mental desenhado para destruir a moral.
O britânico Peter Humphrey, que passou dois anos detido em Xangai, disse que a prisão onde cumpriu sua pena tinha um sistema similar de cálculo e redução de pontos, e que era manipulado para controlar os presos e impedir as reduções de pena.
"Tinha câmeras por toda a parte, até três por cela", disse.
"Se você cruzasse uma linha marcada no chão e fosse flagrado por um guarda por uma câmera, era punido. O mesmo acontecia com quem não arrumasse a cama segundo o padrão militar, ou colocasse as escovas de dentes no lugar errado da cela", acrescenta.
"Havia também pressão de grupos sobre os prisioneiros. Celas inteiras eram punidas se um único detento cometesse alguma dessas infrações."
Um ex-detento contou à BBC que em seus cinco anos na prisão nunca viu os pontos servirem para que um preso reduzisse sua condenação.
Radalj disse que ele e outros internos sequer se davam ao trabalho de participar do sistema de pontos. Com isso, as autoridades recorriam a outros meios de pressão psicológica, entre elas cortar o tempo das ligações telefônicas mensais com a família.
Controle de comida
Mas a punição mais comum era a redução da alimentação.
Vários ex-detentos contaram à BBC que as refeições na Prisão Número 2 de Pequim consistiam principalmente em repolho cozido em água suja, às vezes com pedaços de cenoura e, com muita sorte, pequenas lascas de carne.
Também lhes davam mantou, um pão típico do norte da China. Segundo Radalj, a maioria dos presos ficava desnutrida.
Outro ex-detento relatou como a fome levava muitos presos a comer grandes quantidades de mantou. As dietas eram tão pobres em nutrição e o tempo de exercício era tão limitado — somente meia hora por semana — que muitos emagreciam bastante na parte superior do corpo, mas ficavam com os estômagos inchados por consumirem tanto mantou.
Os presos podiam complementar sua dieta comprando pequenas porções extras, caso seus familiares tivessem depositado dinheiro no que chamavam de "contas", uma espécie de registro penitenciário de fundos destinados à compra de itens básicos, como sabão, creme dental, macarrão instantâneo, ou leite de soja em pó.
Mas até mesmo esse "privilégio" poderia ser tirado deles.
Radalj, por exemplo, conta que lhe impediram de fazer compras adicionais durante 14 meses porque se negou a trabalhar na fábrica da prisão, onde os detentos montavam produtos básicos para empresas ou juntavam folhetos de propaganda para o governo do Partido Comunista.
Para piorar ainda mais a situação, eles eram obrigados a trabalhar em uma fazenda, onde conseguiam cultivar muitos vegetais, mas nunca tinham permissão para comê-los.
Radalj contou que, uma vez, a fazenda foi mostrada a um ministro da Justiça que foi visitar a prisão, como um exemplo das supostas vantagens da vida carcerária. Mas, segundo ele, tudo era uma farsa.
"Plantávamos tomates, batatas, repolhos e quiabo e, no final da temporada, jogavam tudo em um buraco enorme e enterravam", lembrou.
"E se te pegassem com uma pimenta ou um pepino, você ia diretamente para a solitária por oito meses."
Outro ex-detento relatou que, ocasionalmente, recebiam um pouco de proteína, principalmente quando autoridades visitam a prisão. Eles lhes davam alimentos como uma coxa de frango, para que a dieta parecesse melhor.
Humphrey contou que havia restrições alimentares semelhantes na prisão onde esteve, em Xangai, e que isso gerava brigas entre os presos. "A cozinha era administrada pelos detentos. Os que trabalhavam lá pegavam o melhor, e o resto era distribuído."
Radalj foi solto em outubro de 2024 e pôde encontrar o pai e o resto da família
Matthew Radalj
Radalj lembra de uma briga entre grupos africanos e taiwaneses na Prisão Número 2 de Pequim por causa disso.
Os detentos nigerianos trabalhavam na cozinha e "tinham pequenos benefícios, como uma sacola de maçã uma vez por mês, um pouco de iogurte e algumas bananas", contou.
Então, os detentos taiwaneses, que falava mandarim, convenceram os guardas a deixá-los assumir o controle da cozinha, tendo acesso a alimentos extras.
Isso levou a uma briga generalizada, e Radalj acabou preso no meio da confusão. Ele foi mandado para a solitária durante 194 dias por agredir outro detento.
Outra característica na vida carcerária na China, segundo Radalj, eram os momentos de "propaganda" que os funcionários dos presídios organizavam para a imprensa chinesa ou autoridades que visitavam o local.
Nessas ocasiões, encenavam situações para mostrar uma imagem mais bonita da vida na prisão.
Ele contou que, certa vez, montaram uma "sala de computadores".
"Nos reuniram e disseram que teríamos o nosso próprio endereço de e-mail e poderíamos enviar mensagens. Depois filmaram três nigerianos usando os computadores."
Segundo Radalj, os três pareciam confusos, porque os computadores não estavam realmente conectados à internet, mas os guardas mandaram que eles fingissem.
"Tudo foi filmado para passar uma imagem falsa dos presos com acesso a computadores", disse.
Pouco depois da sessão de fotos, os funcionários cobriram os computadores e os presos nunca mais usaram a sala.
A experiência na solitária
Na solitária, as luzes ficavam apagadas, e Radalj percebeu que ficaria quase o tempo todo no escuro, o que lhe gerou um problema sensorial, já que na cela, as luzes sempre ficavam acesas.
A porção de comida, que já era pequena, foi reduzida pela metade. Não havia material de leitura e ninguém com quem conversar durante os seis meses que passou confinado em uma sala vazia de 1,2 metros por 1,8 metros.
"Você começa a enlouquecer, queira ou não, e é exatamente para isso que o isolamento é feito", afirma.
"Depois de quatro meses, você começa a conversar com você mesmo o tempo todo. Os guardas perguntavam: 'Ei, você está bem?' E eu respondia: 'Por quê?'. Eles diziam: 'Porque você está rindo'."
Radalj lembra que costumava responder mentalmente: "Não é da sua conta".
Diário secreto
Durante grande parte da sua experiência na cadeia, Radalj escreveu um diário secreto dentro das máscaras de proteção contra a covid-19.
A notícia de que o australiano planejava tentar tirar da prisão suas anotações se espalhou, e alguns presos lhe passaram informações pessoais para que ele pudesse entrar em contato com suas famílias.
"Entre 60 e 70 pessoas esperavam que eu pudesse falar com seus familiares depois que saísse, para contar o que estava acontecendo."
Segundo Radalj, muitos presos não tinham como avisar suas famílias que estavam na cadeia.
Alguns não ligavam para seus familiares porque não havia dinheiro depositado em suas contas para chamadas telefônicas. Outros não podiam porque suas embaixadas não haviam registrado os números de telefone da família no sistema da prisão, e só era possível ligar para números que fossem oficialmente aprovados.
Radalj escreveu um diário secreto no período em que esteve preso
Matthew Radalj
Um dia, Radalj enrolou os pedaços da máscara com suas "memórias" o mais apertado que conseguiu, usando fita adesiva que havia guardado da fábrica, e tentou engolir o embrulho — do tamanho de um ovo — sem que os guardas percebessem.
Mas não conseguiu aguentar.
Pelas câmeras, os guardas viram que algo de errado estava acontecendo e começaram a perguntar: "Por que você está vomitando? Por que continua engasgando? O que está acontecendo?"
Ele desistiu de engolir o embrulho e o escondeu.
Em 5 de outubro de 2024, quando estava prestes a sair da cadeia, Radalj recebeu a roupa que havia sido confiscada no dia em que ele foi detido. Ele aproveitou um buraco no forro da jaqueta para colocar as memórias dentro, antes que um guarda pudesse vê-lo.
Radalj acredita que alguém contou aos oficiais da prisão sobre seu plano, porque sua cela foi revistada e o interrogaram antes de sair.
"Esqueceu alguma coisa?", perguntaram os guardas.
"Destruíram todos os meus pertences. Eu estava pensando que iam me levar de volta para a solitária e apresentar novas acusações."
Mas os guardas nunca souberam onde o diário secreto estava escondido. "Me disseram: 'Cai fora daqui!'. E só quando eu já estava no avião, depois da decolagem, é que coloquei a mão no forro da jaqueta para verificar. E as anotações estavam ali."
A vida em liberdade
Um pouco antes de embarcar no avião em Pequim, um policial que havia escoltado Radalj até a porta de embarque usou o cartão de embarque dele para comprar cigarros livres de impostos para seus amigos.
"Ele me disse para eu não voltar à China, porque eu estava banido por 10 anos. Eu respondi: 'Sim, ótimo. Não fume, faz mal para a sua saúde'. Ele riu."
Ao chegar de volta à Austrália, Radalj abraçou seu pai no aeroporto de Perth. As lágrimas escorriam.
Pouco tempo depois, se casou com a sua namorada de longa data. Hoje, eles passam os dias fazendo velas e outros produtos.
Radalj se casou com sua namorada de longa data
Matthew Radalj
Radalj diz que ainda está com raiva por tudo que viveu e que há um longo caminho para se recuperar completamente.
Mas está trabalhando na lista de contatos dos seus antigos amigos detentos. "Tenho passado a maior parte dos últimos seis meses entrando em contato com as famílias, pressionando as embaixadas para que tentem fazer um trabalho melhor e os ajudem durante esse período na prisão."
Segundo ele, alguns dos presos não falam com suas famílias há quase uma década. E ajudá-los também tem facilitado a sua própria transição de volta à vida antiga.
"Com a liberdade vem um grande sentimento de gratidão", disse Radalj. "Tenho um apreço maior pelas coisas mais simples da vida. Mas também carrego um profundo senso de responsabilidade pelas pessoas que deixei para trás na prisão."
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